Narke

(Narke, palavra grega que significa entorpecido)

Ontem levei o Brown para ser castrado. Ele é o gato mais adorável que já conheci. Depois de tudo, com ele grogue em meus braços, eu me arrependi. Apesar de todo o blá-blá-blá sobre os benefícios da cirurgia fiquei com um nó na boca do estômago. Tirei dele seu único prazer. Ele sumiu e está desaparecido até agora enquanto escrevo estas linhas.

Isso me apertou o coração e me fez refletir sobre a nossa sociedade capitalista e hedonista. Esse sumiço do Brown é um silêncio que me fez escrever.

Cefiso, o deus do Rio na mitologia grega, era casado com a ninfa Liríope, aquela com a voz macia e que representa a mansidão e a leveza. Nasceu então o belo Narciso. Certo dia, quando Narciso caçava no bosque, ouviu uma bela voz. Era a ninfa Eco. Toda vez que Narciso dizia uma frase ela repetia e escondia-se dele. Eco apaixonou-se por Narciso. Ele, presunçoso que era, rejeitou a ninfa e todas e todos que dele se aproximassem. Eco então escondeu-se de tristeza até que definhou e acabou em ossos e voz. Como vingança pediu aos deuses que ele se apaixonasse por seu próprio reflexo. Certo dia, Narciso passou pela beira do lago para beber água e viu o seu reflexo. Ali ficou até definhar e morrer apaixonado por si mesmo.

Narciso é um dos personagens mais citados nas áreas de psicologia, filosofia, artes e literatura.

No romance de Stendhal, “Le rouge et le noir”, o príncipe Korasoff diz a Julien Sorel:

“Ela olha para ela em vez de olhar para ti, e por isso não te conhece. Durante as duas ou três pequenas explosões de paixão que ela se permitiu a teu favor, ela, por um grande esforço de imaginação, viu em ti o herói dos seus sonhos, e não tu mesmo como realmente és.”

Mas vocês já perceberam que o sistema capitalista no qual vivemos está sempre em busca de preencher o vazio que nos atormenta? Redireciona as nossas pulsões sexuais para satisfazer a sede de consumo. Age basicamente como uma droga no corpo, amortecendo as nossas dores. Ao lado do hedonismo de nossos dias, o narcisismo exagerado nos entorpece. Juntos, atuam como um hábil sistema de recompensa.

Somos pessoas cada vez mais cercadas por nosso individualismo que, num formato egoísta, faz com que o ego busque apenas prazer e satisfação imediata e individual.

Como bem analisou o sociólogo polonês Zygmunt Bauman buscamos prazer nas relações superficiais e fugazes e vemos os vínculos afetivos como líquidos que se moldam e se rompem com facilidade.

E é aqui que entra o meu gato, agora castrado e fora de casa, que fugiu de mim como o diabo da cruz. Ele que sempre foi tão doce e que, com certeza, seria um bom amante.

E o sexo, que durante muito tempo foi visto pela cultura cristã como símbolo resguardado pela sagrada benção divina, agora torna a ser encarado como um simples ato de prazer.

É aquela máxima defendida pelos utilitaristas Jeremy Bentham e Stuart Mill:

“Toda a humanidade, universalmente, tende a buscar o prazer e evitar as possíveis dores”.

É assim que prazer e felicidade confundem-se num mar de possibilidades não tão benéficas quanto se poderia supor.

Estaríamos todos entorpecidos?

Espero que meu gato volte são e salvo. E sem dor.

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