O Dente

(Por Consuelo Pitaguary)

Meus 15 anos – Casa da Tia Sula

Esta história se passa na época em que Ouro Fino (MG) não era a terra do Menino da Porteira.

Nestes dias, de velhos troncos,  ainda viviam na cidade  minha tia solteirona e minha avó, nesse tempo, viúva há pouco.

O melhor programa das duas era ir a velório e nada, mas nada mesmo, as fazia perder a missa de domingo na Matriz.

Os velórios na cidade eram como os filmes de Federico Fellini e eu, de vez em quando, menina ainda e de férias na casa da família, acompanhava as duas. 

O espetáculo fúnebre era negro e tristíssimo. O cheiro de flor entregava ao lugar um aroma de despedida. O defunto podia ser o pior dos seres humanos mas, ali, no caixão, sempre se transformava num ser profundamente honrado e admirado por todos, quase um santo. E até ficavam um pouco mais bonitos do que eram de verdade. Muitas canções e orações religiosas, mas o melhor mesmo, ao menos para mim, era escutar as piadas que, baixinho, tomavam conta do recinto.

Naquela época eu não sabia o porquê, mas julho era um mês em que morria muita gente. Era muito frio. De tanto ir a velório com elas já estava acostumada aos comentários: o defunto estava mais calmo, mais bonito, mais feliz e rosado e até mais jovem. E não é que era verdade? Comecei a observar: a pele do morto se ajeita de uma tal forma que a morte em tudo faz melhorar a  fisionomia inerte.

Mas, um domingo,  guardo comigo até hoje, não fomos a um velório. Foi logo após o meu avô ter morrido. Também é verdade que as férias em Ouro Fino, na maioria das vezes, sempre abalava o meu jeito certinho de viver. É que morar em São Paulo quando se é criança é algo que beira o não ter infância. Todos os meus horários e atividades de “cdf” ficavam bem longe das gostosas brincadeiras de rua na Silviano Brandão, esquina com a Joaquim Pitaguary.

O fato é que estávamos todos ainda muito, mas muito mesmo ressentidos com a morte prematura de duas pessoas muito especiais: a tia Marina e o meu avô Luiz Renault Apocalypse. Vovó sussurrava: uma desgraça nunca vem sozinha. Todos então ruminávamos essas perdas muito dolorosas e penosas e, desesperadamente, inexplicáveis.

Tia Sula, a mulher da casa feita a pau-a-pique, morava onde passei as melhores férias da minha vida. Era alta, magra, determinada, professora de música, ex-aluna de Heitor Villa Lobos, religiosa e solteira. Vovó, sua irmã, baixa, gordinha, engraçada, vaidosa, excelente contadora de histórias, mãe de cinco filhas muito bonitas, dona de casa, apaixonada pela vida e, naquele momento, viúva e mãe inconsolável.

Os programas com a vovó tinham de ser combinados de véspera: além de vagarosa para se arrumar, tinha a peruca e todo um ritual de beleza. Era surda mas, às vezes, ouvia coisas ditas em segredo. Até a vovó ficar pronta era um verdadeiro milagre. Meu avô que o diga.

Já a tia Sula era a pressa em pessoa. Aflita, não suportava atrasar um só minuto e, naquele domingo, as duas combinaram de ir à missa na Matriz.
Cada qual morava em sua casa.  Eram vizinhas. Minha avó começou a se arrumar logo cedinho: banho, talco, roupas íntimas, inclusive, anágua, meias sete-oitavos, cinta-liga, o vestido chemisie, o scarpin, unhas cor de rosa clarinho, peruca impecável, laquê, pó-de-arroz, baton. Última olhada no espelho e… meu Deus, falta um dente na minha ponte! Corre, chama a sua tia e conta para ela o que aconteceu. Banguela na casa de Deus, não vou nem que a vaca tussa! Corre menina!

E eu corri, pronta para dar o recado. Lá fui eu ladeira acima. Cortei caminho pelo quintal, onde morava a tartaruga do tio Geraldo. Aparecida perguntou: o que aconteceu? O dente da vovó caiu. A Tia Sula já está pronta? Nossa, ela vai enforcar a vovó! Deixa disso menina! Quando cai um dente é sinal que alguém vai morrer. Cruz! Vou é fazer uma fézinha no pavão.

E no caminho eu só pensava no frango a molho pardo que só a Aparecida sabia fazer. Hum!

Esbarrei no piano até chegar no quarto da tia Sula. Filha de Maria, lá estava ela, fita azul, véu em punho, prontos para irem para a pequena bolsa bordada, presente do irmão quando este morou em Paris no pós-guerra. Tempos difíceis, ela suspirava. Sua avó já está pronta?

Vixe, como lhe diria? Mas disse logo: o dente da frente dela caiu. Como? Repeti. A Cêla não tem jeito. É mesmo uma mula. Vamos. Pegou um tubinho. O que é isso? Cola.

Cêla, cola com isto. É só espremer no dente e no vão, depois apertar e segurar firme. Funciona? É a melhor cola que existe. E anda logo.

Vovó cumpriu rigorosamente as ordens da tia Sula. Fomos as três à missa.

Tudo parecia resolvido. Pensei comigo: que eficiência, não é à toa que a chamam de sargentona. Entre passos, sombrinhas, passeios portugueses e ruas de paralelepípedos, chegamos. A missa estava lotada. Estranhei: vovó não deu um pio sequer no caminho. No banco, ajoelhamos em penitência: quantos pecados! Rezamos.

Cabeças baixas. Olhei de lado, fitei vovó. E notei, ela não tirava o dedo da boca. Logo ela que adorava conversar na missa. Fiquei quieta. Tia Sula já  segurava o terço, o véu e a fita azul.

Cutuquei: tia, que cola é essa? É nova no mercado Celinha. Super Bonder. Um produto formidável que jura colar tudo com apenas um pinguinho.

Vó. Insisti: vó. Quietas. Começou a missa. Naquele senta e levanta, reparei que vovó não tirava o dedo da boca. Logo ela que vivia dando tapas nas minhas mãos. Tira a mão da boca, menina!

Olhei seu rosto, o dedo ainda na boca, o seu desamparo era total. Cutuquei de novo: tia, a vovó tá com o dedo colado na boca. Psiu! Tiaaa… Nada. Silêncio absoluto.

Voltamos para casa. Tia Sula indagou: Cêla, por que você não tira esse dedo da boca? Agora, além surda você está muda também?

http://yesminas.blogspot.com/2012/03/o-dente.html?m=1

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